Carta de Niterói

Decorrido um ano da redação da Carta de Campinas, encontramo-nos ainda em um cenário convulsivo que insiste em sufocar e desarticular, diariamente, a narrativa oficial da recuperação econômica e da pacificação dos conflitos que transbordaram à superfície com toda a intensidade nos últimos anos.
A insolvência de vários estados brasileiros ganha sua expressão mais visível no Rio de Janeiro. A deterioração aguda e acelerada da segurança pública acua, fere e mata indiscriminadamente. O brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e a morte de Anderson Gomes, muito mais do que meros efeitos colaterais dessa deterioração, revelam ainda o caráter direcionado e premeditadamente simbólico da violência. Ao mesmo tempo, o clima generalizado de medo cria solo fértil para o apoio a soluções repressivas e, especialmente nas comunidades e bairros pobres, violentas e autoritárias. Neste quadro, inclusive, a intervenção federal, com forte viés militar, serve como balão de ensaio para o resto do país, segundo declaração sintomaticamente despudorada do interventor General Braga Netto.
No plano político, a escalada fascista e a prisão de Lula, impedindo-o de concorrer às eleições presidenciais, desnudam a fragilidade da nossa democracia. No plano econômico, a insistente agenda de reformas conservadoras, como a previdenciária e a privatização da Eletrobrás, aponta para a necessidade de colocar a luta da classe trabalhadora em outro patamar, para o devido enfrentamento e resistência. A Petrobrás, finalmente submetida com sucesso aos interesses que pautam a agenda do governo ilegítimo de Michel Temer, acrescenta pólvora a essa mistura com sua política de preços prostrada à ideologia do livre mercado, expondo o país às oscilações de um dos mercados mais evidentemente marcados por determinantes geopolíticos.
Disparada em boa medida pelos impactos dessa política sobre a atividade de transporte rodoviário de cargas, a recente greve dos caminhoneiros demonstrou com toda evidência dois aspectos cruciais de nossa realidade. Primeiro, a força latente e potencialmente irrefreável do povo em ação coordenada e organizada. Segundo, o quanto a sociedade produtora de mercadorias caminha sistematicamente no fio da navalha, sempre a três ou quatro dias de distância do completo caos social. Passada, por ora, a breve tempestade, deve estar claro para todos o quanto as condições mais essenciais de nosso cotidiano repousam sobre pressupostos que escapam completamente de qualquer controle consciente.
A solução ao impasse oferecida pelo governo federal seria cômica, caso se limitasse estritamente ao terreno da ficção. Ela envolve, entre outras coisas, um mecanismo que pode, eventualmente, subsidiar a importação do diesel para preservar a neutralidade das medidas do ponto de vista concorrencial. Há muito, já sabíamos que o ímpeto das práticas de austeridade é completamente apaziguado quando esbarra nas necessidades do mercado e que seu rigor e energia costumam ser direcionados ao desmonte da já frágil rede de proteção social e à suspensão de direitos e conquistas históricas da classe trabalhadora. Agora descobrimos que nem mesmo o discurso da austeridade sobrevive quando o peso do Estado precisa se voltar à promoção da concorrência.
Curiosamente, a(s) tragédia(s) de um mundo neoliberal encontra(m) resistência até mesmo no campo conservador, especificamente capitaneada pelo governo de Donald Trump e suas medidas protecionistas, que ameaçam disparar uma guerra comercial com a China e a União Europeia. Cabe aos economistas críticos contribuir para que o conjunto da sociedade brasileira reflita se o caminho para contornar a crise estrutural da economia global é, de fato, uma mera reabilitação das políticas tradicionais do capitalismo dirigido do pós-guerra.
Não é difícil conceber que a eliminação/superação das distorções que nos assolam exija uma transição possivelmente atravessada por convulsões sociais e econômicas potencialmente severas. Os nós que nos amarram a uma condição subordinada, desigual e injusta não podem ser afrouxados, devem ser rompidos. Se o beco é sem saída, como anuncia o título deste XXIII ENEP, torna-se imprescindível pôr o beco abaixo.

Assinada pela Diretoria da Sociedade Brasileira de Economia Política.